Um dos mais populares artistas gaúchos, ao eternizar sua terra natal em letra de canção, sinalizara para a forte ligação afetiva que ali se estabelecia: “Não me perguntes onde fica o Alegrete, / Segue o rumo do teu próprio coração”, enfatizava Antônio Augusto Fagundes (1934-2015), o Nico, em Canto Alegretense, música que se transformou
em hino gaúcho na interpretação do conjunto Os Fagundes.
Pois um conterrâneo de Nico, que se projetou igualmente como poeta e compositor, reafirma a relação umbilical com os ares do Alegrete. Trata-se de Élvio Vargas, que acaba de lançar novo livro de poesia, Clara anatomia lírica, edição comemorativa de nada menos do que meio século de dedicação intensiva ao fazer poético, numa obra lenta mas inexoravelmente gestada entre 1969 e 2019. Se por um lado a obra marcava o cinquentenário de produção literária, por outro de certo modo antecipa as comemorações dos 70 anos do autor, nascido em 14 de outubro de 1951 e radicado em Porto Alegre há exatas duas décadas, desde 2001.
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Élvio é mais uma prova do virtuosismo inquestionável que acompanha um grupo de expoentes das letras nascidos no Alegrete. Bastaria mencionar o eterno Mario Quintana (1906-1994), que fez o mesmo percurso de Élvio, tendo se fixado na capital, cujas ruas firmou no imaginário de gerações, e na qual faleceu aos 84 anos; e ainda o mestre da narrativa curta Sérgio Faraco, outro alegretense, nascido em 25 de julho de 1940, que segue atuante aos 80 anos. Élvio e Faraco sempre foram próximos, e como tal, na capital gaúcha, são mestres que celebram o que de melhor os gaúchos fazem na literatura.
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Em seu novo livro, a exemplo do que já fizera em sua sucinta porém vigorosa produção poética anterior, Élvio segue à risca a sugestão do conterrâneo Nico. Não é preciso dizer para que lado fica o Alegrete; basta apenas sintonizar com a pulsação de nostalgia, afeto, carinho e memória, e assim se tem a sua terra natal pairando como um espaço mítico, delicado, proeminente, na entrelinha dos versos. Ao abarcar as lembranças de cinco décadas de fazer literário, Élvio homenageia pessoas queridas de suas relações, seja as que, com ele, carregam uma memória comum da sua região de origem, a fronteira; seja as que partilharam de seu convívio, sempre gentil, fraterno e com a marca da extrema fidelidade aos afetos, em suas andanças na cidade grande, um tanto longe das origens.
Uma das marcas inquestionáveis de Élvio, que o salienta em relação a muitos outros poetas, é a preocupação em burilar metodicamente cada verso, para não dizer cada palavra, cada imagem, cada sonoridade, em seus versos. Tal empenho faz com que cada texto seu constitua uma aula de boa poesia. Tem-se a convicção, a nítida certeza, de que a poesia de Élvio não ficará pela quantidade, algo que definitivamente não o ocupa ou inquieta, mas pelo sublime do absoluto. Nada, nunca, sob nenhuma hipótese, está ou poderia estar fora do lugar em seus poemas, e como tal pulsam, cada poema um coração, no rumo do qual deve seguir a ternura do leitor. O novo livro ainda agrega o que ele chama de “Outros Textos”, misto de poemas narrativos, narrativas poéticas ou crônicas.
Em comum entre Élvio e Nico Fagundes, conterrâneos que tão bem cantam a sua terra, está ainda o fato de que ambos se encontraram numa mesma casa editorial, a Editora Gazeta. Por ela, Nico lançou dois livros, o majestoso Águas da minha terra, em 2013, antologia de canções e de poemas, e o volume de contos Os dez putos de Bagé, em 2014, com o qual foi finalista do Prêmio Açorianos de Literatura na categoria Contos.
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Já Élvio lançou pela Editora Gazeta um de seus livros centrais, Estações de vigília e sonho, sua poesia reunida com inéditos, em 2012, agrupando suas obras anteriores (O almanaque das estações, de 1993; e Água do sonho, de 2006) com os originais de Penhascos de vigília. A fortuna crítica enfeixava aquele volume, a exemplo do que acontece agora, quando novamente Élvio compartilha com o leitor, em Clara anatomia lírica, depoimentos de críticos e leitores. Essa “clara anatomia” a que remete é, naturalmente, aquela que leva ao rumo do coração de Élvio, um coração alegretense, alegre, pleno, feliz e realizado.
Folha
Para Eliane MarquesO tempo que me habita
é lentamente movediço.
Sinto e não me assusta
a lenta progressão da relva
e o secreto diálogo dos ventos.
Avançar nos dias de hoje… tributa-me.
No recorte da minha sombra
agitam-se todos os pássaros.
Folhear-me em vida
custa-me o preço de muitas mortes…Publicidade
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