Ídolos do futebol de praxe são construídos ou forjados dentro de campo, em desempenhos com virtuosismo e espírito de equipe que resultam em grandes conquistas. Mas nem sempre. Há personagens que atuam fora das quatro linhas, por vezes até longe delas, e que se eternizam da mesma forma. Foi o caso de um torcedor gremista cuja inspiradora existência o jornalista e escritor gaúcho Léo Gerchmann decidiu resgatar e fixar. O livro A fonte: a incrível história de Salim Nigri, lançado em 2020, sob o selo da AGE, faz justiça a um dos mais atuantes e entusiasmados torcedores esportivos que o Estado já viu surgir.
E muitos elementos na biografia de Nigri estimulam a reflexão e a admiração. Nascido em 25 de março de 1926, era descendente de judeus, de uma comunidade que sempre teve o Centro Histórico e o Bairro Bom Fim, na capital gaúcha, este eternizado em romance de Moacyr Scliar, como seus ambientes referenciais. O Grêmio e a comunidade judaica em terras gaúchas tiveram laços de contemporaneidade: o clube foi fundado em 1903, enquanto no ano seguinte chegaram as primeiras famílias de imigrantes judeus ao Estado, deixando para trás a conflagrada Europa e seus movimentos antissemitas, e isso ainda bem antes das duas grandes guerras. A Argentina era destino recorrente na América do Sul; em seguida, o Rio Grande do Sul, pela proximidade geográfica, foi outra região eleita para receber famílias de judeus.
Assim, em Porto Alegre, nas primeiras décadas do século 20, e enquanto se situavam em relação ao novo espaço social e cultural, judeus seguiam junto com outros torcedores para a Baixada a fim de conferir as primeiras apresentações de um novo esporte, o foot-ball, pelo esquadrão do Grêmio. Salim, ainda adolescente, começou a se envolver com futebol, até o momento em que foi convidado a cuidar da Biblioteca na sede do clube, na Rua dos Andradas, exatamente ao lado da sede do maior rival.
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Foi Salim quem, já acometido da progressiva perda da visão que o deixaria completamente cego, em um dia de 1946, por volta dos seus 20 anos, afixou uma faixa no Fortim da Baixada com uma frase: “Com o Grêmio onde estiver o Grêmio”. Foi ela que poucos anos depois inspirou o compositor Lupicínio Rodrigues, um dos maiores expoentes da música gaúcha em todos os tempos, a elaborar o Hino do Cinquentenário do clube. Que começa com os hoje conhecidíssimos versos “Até a pé nós iremos / Para o que der e vier / Mas o certo é que nós estaremos / Com o Grêmio onde o Grêmio estiver”. Lupi naturalmente só inverteu a ordem da frase idealizada por Salim, para preservar a rima. Era apenas uma entre muitas contribuições de Salim para o clube do seu coração.
O clube trouxe-lhe alegrias indescritíveis
Ao recuperar a história de Salim, que faleceu em 1o de março de 2010, a dias de completar 84 anos, Gerchmann situa essa trajetória no contexto maior: étnico, cultural, social. Lembra que o Grêmio havia sido marcado pela atuação revolucionária da Coligay, torcida organizada formada por homossexuais nos anos 70 e no início dos anos 80, e que tivera apoio da então diretoria gremista, à frente o santa-cruzense Hélio Dourado como presidente. E que no DNA do Grêmio, por suas cores oficiais, estava o acolhimento, desde os primórdios aceitando jogadores negros, e que a ligação com a cultura afro se tornara definitiva com o hino composto por Lupi. E ainda se salientava a forte ligação com a comunidade judaica, em mais uma acolhida feita pelo Grêmio.
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Embora tenha optado por mais recolhimento em família, até pela cegueira, Salim nunca deixou de acompanhar tudo do Grêmio, e de perto. De casa, na companhia da esposa e da filha, mantinha à mão vários aparelhos de rádio, e mais de um aparelho de telefone, para ficar em contato com dirigentes. Era fonte estratégica, nada menos do que “a fonte” (daí o título do livro), para jornalistas de rádio e jornal. E em sua vida, Salim teve alegrias indescritíveis, como ver o Grêmio campeão do Brasil em 1981 (de novo em 1996), da América em 1983 (de novo em 1995), do mundo naquele mesmo ano, quatro vezes campeão da Copa do Brasil, entre tantos marcos. Viu, claro, o clube também descer à Série B, e se emocionou com a Batalha dos Aflitos. Só não viu as conquistas mais recentes, a Copa do Brasil de 2016 e a terceira Libertadores, em 2017, mas sua marca estaria para sempre na memória do clube.
FICHA
Ao saber da morte de Salim Nigri, Hélio Dourado, o ex-presidente e patrono, o homem que cantava o hino de Lupi em todos os eventos nos quais estivesse, o responsável pelos times que desencadearam as fases de glória além-fronteiras do Tricolor, ele mesmo, Hélio Dourado, proferiu uma frase forte para os jornalistas que pediam seu depoimento:
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– Salim foi o gremista mais gremista que conheci.
Os netos se dizem orgulhosos quando falam o sobrenome Nigri e alguém pergunta se conhecem o Salim, muitas vezes emendando: “Ué! Mas ele existe?! Não é invenção da imprensa?”
Não. Nunca foi invenção!
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Existiu. Viveu. Amou.
E tudo com muita intensidade.”
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